quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Nunca mais outra vez

Era mais ou menos a entrada da primavera de 1982. Fazendo uma arrumação depois do inverno - aquela coisa de trocar os casacos pendurados pelos vestidos antes entocados -, a minha mãe me chamou. Ela tinha encontrado, no fundo do maleiro, meu brinquedo favorito. Meu Pequeno Engenheiro. Lembra disso?

Pois é, eu lembrava muito bem. Pedi aqueles tijolinhos de madeira com pintura imitando castelo por meses a fio - até que, no aniversário, um fevereiro antes, ganhei. Amei. Brinquei um dia inteiro, eu recordo direitinho, de manhã até o sol ir embora. Depois guardei, arrumando tudo com esmero, tijolo por tijolo, telhado por telhado, ponte por ponte (mas acho que eram só duas pontes... enfim).

Brinquei de novo no dia seguinte, e tornei a guardar na caixa. Dali uns dias brinquei mais algumas vezes, sempre retornando todos os itens na caixa, contados e organizados com face pra cima. Um tempo depois, eu não queria mais brincar toda hora com o Meu Pequeno Engenheiro porque não queria que sujasse ou saísse a tinta. Ele serviria só pra ocasiões especiais, decidi, como no dia em que os Playmobils precisassem fazer fantasiosamente uma viagem pra um castelo inglês ou algo assim. E lá os tijolinhos ficaram, encerrados no armário, protegidos, resguardados e muito, muito seguros.

Meses e meses depois, na tal arrumação da mamãe, o tesouro resurgiu como um fóssil de dinossauro no deserto do Piauí. E sabem o que tinha dentro? Cada pequeno retângulo e triângulo madeirado, todos juntinhos, todos... possuídos por mofo. Casa em São Bernardo do Campo, SP, há 28 anos, quando o clima da Terra ainda previa muita garoa na área era assim.

Impregnação verde instalada, não teve mais jeito de brincar com os tijolinhos, porque eles me faziam tossir feito um cachorro tuberculoso. Foram sumariamente descartados. E naquele dia, com lágrimas nos olhos e um rabanete nas mãos (não, acho que essa foi outra garota...), prometi pra mim mesma que jamais guardaria outro objeto querido novamente. Nunca mais deixaria "pra mais tarde".

Aprendi mesmo a lição, ainda que na tenra idade. Dali por diante não reservei roupas pra usar em ocasiões especiais, não muvuquei pratos bonitos pra dispôr em jantares comemorativos, não deixei pra comer ou beber posteriormente aquilo que parecia tão bom de comer e beber na hora. Tudo bem, teve aquela vez em Los Angeles em que eu quis tirar uma fotografia da piscina iluminada à noite, não tirei e, no dia seguinte, a lâmpada estourou e nunca vieram consertar, eliminando as chances de clicar a imagem. Mas foi só essa vez!

Esse negócio de separar o filé pra depois nunca dá certo. Em Veneza, vi na vitrine um colarzinho de vidro artesanal que achei lindo - mas bateu uma incerteza e decidi pensar melhor e, caso quisesse mesmo, voltar outra hora. Dei dois passos adiante... dois de volta... e comprei o colar. Foi uma sábia decisão: mesmo tentando, nunca mais achei aquela viela (porque em Veneza a gente se sente um bêbado sem rumo, os becos não têm placa e é quase impossível refazer um mesmo caminho).

Tento repassar delicamente essa informação pra que outros não sofram pelos seus tijolinhos (metaforicamente) como eu sofri. Mas essa semana mesmo o Dono da Casa abriu uma caixa pra apanhar suas preciosas ferramentas de marcenaria importadas e... bom, elas tinham enferrujado de tanto ficar guardadas. Eu sei o que ele sentiu. Dei dois tapinhas nas costas, um beijo no rosto e disse "eu já te contei a história do Meu Pequeno Engenheiro, não contei?". Ele acenou que sim com a cabeça e respondeu "já entendi". E mais um aprendeu a dura lição do desapêgo e sobre como é importante aproveitar certos momento na hora, até o osso, sem medidas. Ela sempre vem mesmo, ainda que tardia.


Saudade de vocês, que eu deixei partir por ser muito trouxa...

12 comentários:

Gabriela P. disse...

Ah, eu ganhei o meu Pequeno Engenheiro quando tava na segunda série. Isso me deu saudadinha dele. Acho que eu nem brinquei direito, sei lá...
Como eu sou a pessoa mais precipitada que existe, acho que esse problema eu não terei... Pelo menos espero.

Ana Luísa disse...

Ei Flávia! Eu tbm tive um pequeno engenheiro, aliás, acho que tive mais de um. E já brinquei depois de grande, construindo altos castelos com meu afilhado. Mas a lição do post é bem importante mesmo. Nunca existe melhor hora do que agora, pq a possível melhor hora pode chegar tarde demais. =]
Beijos!

Dri_ disse...

Que história bonita e bem contada!

Acho que estou sensível, porque fiquei com vontade de te dar um abraço...

Alessandra Pilar disse...

Oi Flávia, eu tbém tive um pequeno engenheiro e brinquei muuuito com o meu. E não é que encontrei outro dia pra vender e, claro, não resisti e comprei pro meu pequeno! Ele adora também. Bom, quanto ao assunto do post, eu faço sempre isso de deixar pra depois e SEMPRE me arrependo. Vou seguir seu conselho e aproveitar as coisas boas da vida na hora em que aparecem. O tempo não volta e depois a gente fica com a sensação de fracasso.
bjos

Mariana Zanini disse...

Ei, eu também tinha um conjunto do Meu Pequeno Engenheiro! Só não sei que fim ele levou... anyway, entendo perfeitamente e sigo há um tempo a sua filosofia de não "guardar o filé" e passar pra frente o que não é mais útil ou querido.

Lindo texto, flor. Tem muito a ver com o que conversamos outro dia sobre guardar tranqueiras e etcs, não?

Beijocas,

Mari.

Sócia da Light disse...

hahaha! Dri, sinto-me abraçada, obrigada! :-D

Mari, tem tudo a ver com aquilo que falamos. Aliás, em breve vou colocar em escritos aquilo lá, sobre doar, reciclar, reutilizar e/ou dar área no acúmulo de coisas.

Não sei se a sensação é de fracasso, Alessandra, mas talvez algo como... ah, talvez um belo de um arrependimento. E nada pior do que se arrepender, viu, que é um sentimento inútil e não faz o tempo voltar. Assim sendo, mastiguemos a vida como ela merece! :-]

E parece que todo mundo já botou as mãos no Pequeno Engenheiro, hein? (Ok, frase estranha...). Gabi, Ana, espero que vocês tenham aproveitado. Tem brinquedo melhor? Sabrina teve um semelhante, só de blocos coloridos, e amava. Esses dias reencontrou e passou hooooras brincando. O dela não mofou. :-/

Spaf disse...

Essa é uma das razões de eu não me sentir mal dos Gi Joe da minha coleção que eu tenho desde a infância estarem gastos de tanto eu ter brincado. Quando eu compro os antigos pelo Mercado Livre e vejo que estão praticamente novos, e que provavelmente nunca passarm pela mão de uma criança, fico pensando que é um certo desperdício... Talvez seja influência de ter assistido Toy Story também xD

Nanael Soubaim disse...

O futuro é um tempo que não existe, o passado é um tempo que já não existe; não se guarda tempo para viver depois.

Daniele disse...

Esse texto lembra tanto o Garotas. :)

Nunca tive um, mas lembro de brincar com os bloquinhos na dentista. Engraçado como coisas tão sem graça hoje eram tão divertidas na infância.
Grande lição, a gente nunca sabe se vai tá vivo amanhã, ou daqui a 10 minutos. Não dá pra guardar a vida, né, tem que viver tudo de uma vez até acabar.

Lady Sith disse...

É uma lição valiosa. Sou mestra em deixar as coisas para depois, não conseguir e me arrepender amargamente.

Jeeh disse...

Flá Wonka! Ai que emoçããão!
Eu estava na base do Prozac desde o fim do "Garotas", mas agora vejo uma luuuz no fim do túnel! Achei esse blog faz uns três dias e nas horas em que a faculdade não me escraviza fiz mini maratonas pra ler todos os posts. Noooossa, to muuuito feliz!

Sócia da Light disse...

Hahaha! Olá, Jeeh! Que bom que me achou então. Venha sempre ler - apesar de aqui as atualizações serem mais espaçadas, só quando a Mamy aqui pode. :-]

(Fazia tempo que ninguém me chamava de Wonka, já estava até esquecendo o codinome.)