sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Abre a porta e a janela

Minha relação com casas - não só a minha própria, mas todas as casas - é muito intensa. Eu sempre vou me lembrar de míseros detalhes de todas as casas em que eu morei. E boto reparo na casa alheia sim. Mas não, eu não noto as roupas jogadas no canto, as migalhas na mesa do café ou a louça suja na pia. Eu olho mais o todo. E não entendo a relação que algumas pessoas têm com as casas.

Acho que casas são substantivos concretos com uma alma dentro. Tem parede, porta e janela feitas de cimento, tijolos e madeira. Mas elas têm cada uma sua personalidade. Casa é que nem gente, só que melhor.

As casas ganham a nossa cara quando vamos morar nelas, mas também impõem a sua ordem. A gente pinta a casa de cor de rosa Barbie pra ficar uma casa assim bem menininha - e aí os anos passam, a tinta desbota e a casa da Barbie peituda, esguia e loirona vira uma casa de vovó doce que aprecia um tonzinho salmão.

Tanto é verdade que as casas têm alma que basta a gente entrar em uma pra sentir uma vibe. Às vezes boa, às vezes nem tanto... todas têm um ar diferente, um cheio nesse ar, um tipo de conforto ou desconforto a oferecer. Gente que procura casa pra comprar ou alugar vai concordar com isso: entra-se em uma e dá vontade de sair correndo; entra-se em outra e, pronto, dá aquela sensação de lar. Vai entender essas casas. (Mas eu acho que as de vibe ruim só não encontraram seu caminho ainda, elas vão melhorar...).

O que não dá mesmo mesmo pra entender é gente que não percebe nem respeita a alma de uma casa. Tem lá quem compre 500 delas e bote tudo pra alugar sem nem dar uma pinturinha ou arrumar o portão quebrado. E aí vai outro e, muito pior, mora na casa sem nem dar uma pinturinha ou arrumar o portão quebrado! Falta de respeito, credo. Alugada, própria, emprestada, possuída... a casa é nossa, temos que fazer o melhor por ela.

Quando compramos o apê que hoje é nossa casa, o apelidamos carinhosamente de "pedaço de Saigon" (ok, a alusão só vale pros nascidos antes de 1980 que entendem a metáfora vietnamita tão bem lembrada por Emilio Santiago). Era tudo uma lástima, com chão arranhado, conduítes estragados e ladrilhos se soltando como periguetes no Carnaval. Ainda assim, sentamos ali entre os tacos soltos, vimos a luz do sol vespertino entrar e nos apaixonamos. Eu me senti em casa desde o minuto #1.

Tinha alma, esse lugar. E me doeu bem pensar que os que moraram aqui antes não viram isso. Eu sei que eles não viram porque, no batente da porta do quarto havia um tremendo talho - produzido pelo homem pra passar um fio de TV a cabo. De verdade: quem abre uma cicatriz numa madeira de 60 anos de vida, num apartamento de 60 anos de vida, pra passar um fio? Que gente é essa que não sabe ter capricho e nem carinho pela alma da minha casa?

Eu ando pelo bairro e vejo casas e mais casas à venda e pra alugar. Todas com mato alto na entrada, todas com telhas soltas, todas tristes e sozinhas, passando frio e fome de vida interior. Eu olho pra elas e tenho certeza que queriam ter crianças em seus jardins, cachorros roendo seus móveis, adultos brindando as festas de fim de ano. Todas foram fixadas na faixa do milhão pra mais - e por mais que eu respeite o direito à propriedade, tenho um certo asco da especulação e como ela fere a alma de casas tão lindas deixando-as assim, largadas por não terem um dono que se importe.

As casas querem ser moradas. Querem ser recheadas de gente, de vozes, de decoração brega e bibelôs trazidos de viagem. Querem ter fotos espalhadas nelas e alguém que lhes dê um banho de verniz, um balde de água e um almoço de domingo. Querem ouvir nossas canções no rádio e no gogó, querem abrigar nossos dias bons e ruins e preservar nossos pertences bem no coração delas.

Porque toda casa precisa de carinho e afeto pra formar uma alma dela e nos ajudar a formar também a nossa.

Minha casa tem alma, e que bonita ela é

6 comentários:

Cristiane disse...

Sua casa é linda, Flá! Principalmente por conta de quem mora nela!

Chicória disse...

Que lindo esse texto e essa foto... Assim são as casas, e como elas nos marcam e nos completam!

Nanael Soubaim disse...

Quanta sapiência, Mamma Flávia! Estou certo de que conheço a egrégora de tua casa, e de que posso chamá-la de "Quero Ficar".

Marcelo disse...

"ladrilhos se soltando como periguetes no carnaval". Símile: uma moda homérica que está há 3mil anos na moda, para quem sabe usar!

Fabio disse...

Puxa, ficou bonitinho esse seu texto, hein? Concordo!

Anônimo disse...

Aí quando o coração tá apertado, com mudanças querendo ser feitas e aparecendo lá no virar da esquina, a Flá vem e conforta meu coração. Mas que dom hein?!

Que lindo! Um dia já disse porque queria ser como vc quando crescesse, e vira e mexe vc me aparece aqui com outra "novidade" peculiar sobre vc que, quem diria, é como eu.

Assim como você adoro reparar em detalhes de casas. Não nas bagunças dos donos ou coisas do tipo, mas como as coisas se encaixam ou não nelas.

Quando estou com insônia paro e lembro daquela casa bacana que vi em algum lugar, que pertence a um conhecido, como ela funciona, como ficaria melhor, como não mudaria nada...

Delícia de texto, inspirou muito... bom saber que não sou a única louca no mundo que sai por ai vendo detalhes que a maioria do mundo deixa passar batido, que não sabe traduzir. ;)

beijinhhos