Minha relação com casas - não só a minha própria, mas todas as casas - é muito intensa. Eu sempre vou me lembrar de míseros detalhes de todas as casas em que eu morei. E boto reparo na casa alheia sim. Mas não, eu não noto as roupas jogadas no canto, as migalhas na mesa do café ou a louça suja na pia. Eu olho mais o todo. E não entendo a relação que algumas pessoas têm com as casas.
Acho que casas são substantivos concretos com uma alma dentro. Tem parede, porta e janela feitas de cimento, tijolos e madeira. Mas elas têm cada uma sua personalidade. Casa é que nem gente, só que melhor.
As casas ganham a nossa cara quando vamos morar nelas, mas também impõem a sua ordem. A gente pinta a casa de cor de rosa Barbie pra ficar uma casa assim bem menininha - e aí os anos passam, a tinta desbota e a casa da Barbie peituda, esguia e loirona vira uma casa de vovó doce que aprecia um tonzinho salmão.
Tanto é verdade que as casas têm alma que basta a gente entrar em uma pra sentir uma
vibe. Às vezes boa, às vezes nem tanto... todas têm um ar diferente, um cheio nesse ar, um tipo de conforto ou desconforto a oferecer. Gente que procura casa pra comprar ou alugar vai concordar com isso: entra-se em uma e dá vontade de sair correndo; entra-se em outra e, pronto, dá aquela sensação de lar. Vai entender essas casas. (Mas eu acho que as de
vibe ruim só não encontraram seu caminho ainda, elas vão melhorar...).
O que não dá mesmo mesmo pra entender é gente que não percebe nem respeita a alma de uma casa. Tem lá quem compre 500 delas e bote tudo pra alugar sem nem dar uma pinturinha ou arrumar o portão quebrado. E aí vai outro e, muito pior, mora na casa sem nem dar uma pinturinha ou arrumar o portão quebrado! Falta de respeito, credo. Alugada, própria, emprestada, possuída... a casa é nossa, temos que fazer o melhor por ela.
Quando compramos o apê que hoje é nossa casa, o apelidamos carinhosamente de "pedaço de Saigon" (ok, a alusão só vale pros nascidos antes de 1980 que entendem a metáfora vietnamita tão bem lembrada por Emilio Santiago). Era tudo uma lástima, com chão arranhado, conduítes estragados e ladrilhos se soltando como periguetes no Carnaval. Ainda assim, sentamos ali entre os tacos soltos, vimos a luz do sol vespertino entrar e nos apaixonamos. Eu me senti em casa desde o minuto #1.
Tinha alma, esse lugar. E me doeu bem pensar que os que moraram aqui antes não viram isso. Eu sei que eles não viram porque, no batente da porta do quarto havia um tremendo talho - produzido pelo homem pra passar um fio de TV a cabo. De verdade: quem abre uma cicatriz numa madeira de 60 anos de vida, num apartamento de 60 anos de vida, pra passar um fio? Que gente é essa que não sabe ter capricho e nem carinho pela alma da minha casa?
Eu ando pelo bairro e vejo casas e mais casas à venda e pra alugar. Todas com mato alto na entrada, todas com telhas soltas, todas tristes e sozinhas, passando frio e fome de vida interior. Eu olho pra elas e tenho certeza que queriam ter crianças em seus jardins, cachorros roendo seus móveis, adultos brindando as festas de fim de ano. Todas foram fixadas na faixa do milhão pra mais - e por mais que eu respeite o direito à propriedade, tenho um certo asco da especulação e como ela fere a alma de casas tão lindas deixando-as assim, largadas por não terem um dono que se importe.
As casas querem ser moradas. Querem ser recheadas de gente, de vozes, de decoração brega e bibelôs trazidos de viagem. Querem ter fotos espalhadas nelas e alguém que lhes dê um banho de verniz, um balde de água e um almoço de domingo. Querem ouvir nossas canções no rádio e no gogó, querem abrigar nossos dias bons e ruins e preservar nossos pertences bem no coração delas.
Porque toda casa precisa de carinho e afeto pra formar uma alma dela e nos ajudar a formar também a nossa.
Minha casa tem alma, e que bonita ela é